Existe um código secreto registrado em uma linha tênue entre a criação e a identidade do ser humano que extrapola os limites da razão. De um fantástico imaginário a um extraordinário subjetivismo, o Amor parece confundir os sentidos e provocar reações que se manifestam de diferentes maneiras até que possamos finalmente descobrir quem somos e o quanto podemos suportar dentro de um universo particular.
São muitos os estudos acerca desse sentimento que buscam romper com o simples conceito de afetividade por alguém, seja familiar, social ou sexual para trazer à luz do conhecimento um entendimento mais profundo através da psicanálise.
Na mais recente obra “A gente mira no amor e acerta na solidão”, Ana Suy alerta sobre a possibilidade de que não há amor que nos livre da solidão, mas sim do desamparo.
Além de autora dos livros “Amor, desejo e psicanálise”, “Não pise no meu vazio” e “As cabanas que o amor faz em nós”, Ana Suy Sesarino Kuss também é Psicanalista, professora da graduação de Psicologia da PUC-PR e Doutoranda em pesquisa e clínica pela UERJ, mestre em Psicologia Clínica pela UFPR.
Segundo ela, devemos saber o quanto valioso é para o desenvolvimento psíquico em ficarmos sozinhos na relação com o outro e que aprendemos isso desde cedo enquanto crianças com nossos pais (lê-se cuidadores).
O importante é saber como lidar com essa angustia em viver com a gente mesmo.
Em uma entrevista exclusiva para a Rede de Comunicação do Jornalismo Colaborativo, perguntamos à Ana Suy alguns aspectos sobre as diferenças de Amar e Ser Amado e de que maneira podemos entender o que de fato é o Amor.
JC: Ana Suy, é com muita alegria e profundo respeito pelo seu trabalho que iniciamos essa entrevista com algumas perguntas que esperamos responder às muitas dúvidas em comum com nosso público leitor.
JC: Em um seminário sobre “O Amor na Psicanálise” você diz que o Amor é qualquer outra coisa”. Mestre do simbolismo, Baudelaire dizia que o amor é a grande coisa da vida. Para você o que é o Amor pura e simplesmente?
Ana Suy: O amor é outra coisa, rs. Quando faço essa brincadeira nas redes sociais, de insistir que o amor é outra coisa, sempre recebo perguntas indignadas: mas afinal, o que é o amor? Como se fosse possível defini-lo e dar uma última resposta. Essa brincadeira de dizer que o amor é outra coisa me interessa muito na medida em que ela destaca um desencontro no amor. Não digo nem do desencontro de um com o outro no par amoroso, mas no desencontro de cada um com a experiência amorosa. O amor está sempre escapulindo. É o que nos leva a persistir. Para usar um psicanalitiquês, poderia dizer que é a presença do desejo no amor que leva o amor a ser sempre outra coisa.
JC: O amor já foi definido como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógeno que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana. No mundo das ideias de Platão, o erro cometido teria sido desafiar os Deuses. E como castigo, Zeus separou este ser com seus raios, que divididos, incompletos e infelizes, passaram a procurar por toda a parte a sua cara metade. Como você contextualizaria o mito dessa busca por uma alma gêmea para restaurar a perfeição que desapareceu para que nossas identidades sobrevivessem?
Ana Suy: Esse mito demonstra bem a fantasia de completude que nos orienta: a ideia de que encontraremos nossa metade da laranja, a tampa da panela, e por que não, mais recentemente, “a melhor versão de nós mesmos”. Seja uma versão em par ou uma versão individualizada, o que esse mito sustenta é que haveria um modo de não termos que haver com nossa falta, de que existiria algum jeito de escapar da castração. Essas saídas são todas fakes. No fim do dia temos sempre que nos haver com alguma estrangeirice em nós mesmos, o que esburaca essa fantasia de completude.
JC: Ao observar a presença cada vez mais forte da Mulher contemporânea, quais as mudanças que você destaca sobre o posicionamento do homem em relação ao Amor e ao feminino no século XXI?
Ana Suy: O amor, historicamente, tem uma função bastante importante na vida das mulheres. Até recentemente precisávamos da autorização de um homem (o pai, o marido) para fazer coisas como estudar, trabalhar, votar – quando isso era possível. Nos dias de hoje, fazer isso nos parece tão simples que tendemos a tomar como algo natural, mas é preciso lembrar que isso é efeito de muita luta, de muita reivindicação, de muito trabalho. Nos dias de hoje, então, o casamento e a maternidade, embora sejam valiosos na vida de muitas mulheres, já não é mais tudo para cada uma. Isso muda a relação das mulheres com o amor, e não há quem saia ileso do reposicionamento dessa equação. Os homens, as crianças, todos são afetados. As mulheres já se questionavam antes sobre as suas existências, identidades, modos de viver a sexualidade e seguem se questionando. Mas cada vez mais também os homens têm colocado essas questões no centro de sua vida. Tenho recebido muitos relatos de homens que têm lido “A gente mira no amor e acerta na solidão” e têm recomendado o livro às suas companheiras, o que me deixa positivamente espantada. O mais comum sempre foi que as mulheres lessem meus escritos, buscassem análise ou psicoterapia, enquanto os homens resistiam às questões e reinvenções. O cenário está mudando.
JC: Depois de um certo tempo, muitos casais passam a cogitar a ideia de abrir o relacionamento e introduzir um terceiro elemento. Algo que para Freud deveria permanecer oculto na vida do sujeito e que, quando aparece, causa estranheza, para outros pode ser interessante. Em sua análise, você acredita que tal fantasia poderia desencadear uma decepção e com isso o fim do relacionamento? Como você vê essa situação se em uma relação há várias formas de amar?
Ana Suy: Enquanto houver amor, haverá fantasia presente. Na medida em que uma fantasia pode ser realizada, outra aparecerá, uma vez que a fantasia é condição para o desejo. Nesse sentido, não me parece problemática a tentativa da realização de uma fantasia, já que ela é impossível, por estrutura. Porém, o que chama atenção em sua pergunta é o momento em que muitos casais decidem incrementar a relação, digamos. Por vezes, o fazem em momentos em que já não sabem mais como sustentar uma relação, por vezes já não há mais relação. Me parece mais crítico o momento e os motivos que levam às invencionices do que as saídas que cada casal encontra para manter ou reacender as fantasias amorosas e sexuais.
JC: É certo que cada um cria seu caminho a partir de suas próprias escolhas. Parece, no entanto, existir especialmente na mulher, uma insistência em relação ao Amor. Podemos pensar na posição feminina como mais persistente em criar saídas para se manter relações?
Ana Suy: Aí faz-se importante diferenciar as mulheres da posição feminina. A posição feminina é a posição possível de se viver o amor, seja ele vivido por uma mulher, por um homem, por alguém não binário. É próprio da posição feminina a abertura para o desconhecido, a sustentação de um corpo que suporta a estranheza, o desconhecido…. características essas que são próprias do encontro amoroso. Certamente, em nossa cultura, ainda são as mulheres que mais servem de suporte à novidade. Aos homens, o que é mais reservado, ainda, é que eles não se emocionem, não sintam, não chorem, não amem – sob o risco de ter sua masculinidade ameaçada. O amor ameaça a masculinidade de cada um/a, mesmo.
JC: Se considerarmos que atravessamos um momento absolutamente diferente do que tradicionalmente era vivenciado em tempos analógicos, você acredita na possibilidade dos algoritmos desses muitos aplicativos de relacionamentos serem aliados para verdadeiros romances, tendo em vista que os mesmos cruzam afinidades entre os usuários? Como os ideais podem ser garantias quando as diferenças fazem parte das contingências do amor?
Ana Suy: Não acredito. Confesso que respondo rindo, porque posso um dia me surpreender, é claro, mas hoje tenho clareza de que o que nos interessa na experiência amorosa, é o insondável, o incalculável, o “incruzável”!
JC: Por fim, em “Nota sobre o Desejo” você descreve o quanto devemos movimentar a intensidade com que se ama. Logo, amor é também trabalho. E se reconhecemos que as relações humanas também fazem parte de um trabalhar com algo que gostamos, como você atribui o sucesso das relações entre um casal que conscientes do compromisso e necessidade do “arroz, feijão e boletos”, consegue, perdurar por toda a vida sem ficarem presos a um ideal ou numa paralisia silenciosa?
Ana Suy: Acho que a ideia de “perdurar a vida toda” já é um ideal que pode perturbar o próprio amor. Alguns chegam a viver um amor a vida toda, mas não acho que essa seja a única forma ou mesmo a melhor forma de viver um amor. Amor é uma experiência singular, toda vez que comparamos com outra experiência amorosa, estamos de novo em torno de um ideal que se esforça para não cair e que com isso pode perder muito. Amor é exceção, não é regra.
Essa entrevista exclusiva de Ana Suy reforça o propósito da Rede de Comunicação do Jornalismo Colaborativo em que o preto e branco só existem em nosso logotipo, pois diante de um momento em que ainda somos bombardeados com notícias de intolerância e discursos de ódio, sempre buscamos respeitar os diferentes tons que os Colaboradores utilizam para dar vida e novas cores à Imprensa.
Um agradecimento especial à também psicanalista Daniela Vitoretti que contribuiu para o embasamento das questões que trouxemos à nossa entrevistada Ana Suy que estará na Bienal do Livro, dia 10 de Julho em um bate-papo e sessão de autógrafos com sua mais recente obra “A gente mira no amor e acerta na solidão“.